quinta-feira, 25 de fevereiro de 2010

Marcar consulta médica

Dizem que o brasileiro mata um leão por dia para sobreviver. Atualmente, porém, mata de hora em hora. Sou um dos sobreviventes do Brasil romântico, ético, e da Cuiabá das cadeiras de balanço nas calçadas. Sou do tempo dos brinquedos infantis não industrializados e dos políticos que morriam pobres. Sou do tempo em que todo médico visitava e medicava os seus pacientes em casa. Na época do parto, mudava-se para a casa da parturiente. Fui “enfermeiro” do meu avô, especialista na clínica dos três “P”: parente, pobre e padre.

Acompanhei a chegada dos tempos modernos, e de certa forma, fui um ativista nessa transformação. Na área da saúde estive na sala de parto por ocasião do nascimento dos seus cursos, especialmente dos dois de medicina. Tenho sistematicamente combatido a desigualdade social com a preconceituosa divisão dos cidadãos, em seres de 1ª e 2ª classes. Infelizmente essa classificação existe em todos os segmentos da nossa sociedade, inclusive na saúde.

A Medicina, com exceções para confirmar a regra, tornou-se uma profissão desumanizada. Os médicos mais jovens são vítimas desse perverso modelo econômico, que não valoriza a vida e sofrem com o sofrimento dos seus pacientes. Grande parte da nossa população depende do desumano SUS. Uma pequena parcela possui algum tipo de plano de saúde - que atualmente não tem muita diferença do SUS. A minoria das minorias consegue chegar às ilhas de excelência no atendimento médico. Quem chega lá geralmente são os funcionários graduados do poder público, em todo o seu conjunto: executivo, legislativo e judiciário. As despesas são pagas pela mãe pátria, pois já escutei dizer que eles não são “qualquer um”. Alguns milionários também freqüentam essas ilhas.

Considero-me um privilegiado, embora não seja nem político, tampouco milionário. Os meus médicos hoje, ou foram meus alunos, ou colegas universitários. Por ocasião das minhas consultas rotineiras faço como todo cidadão de 1ª classe, que é aquele que possui plano de saúde. Telefono para o consultório do colega, falo com a secretária e peço para agendar um horário para mim. Aviso que já sou cliente, para não cair na malha da primeira consulta. Muitos colegas não atendem mais pacientes novos de planos de saúde, salvo os que se mudaram para as ilhas de atendimento médico de excelência. A secretária que me atendeu recentemente me informa que horário para consulta só na última semana de abril. Indago espantado: “você sabe que dia é hoje?” Ela calmamente respondeu que sim. Aí, não resistindo a uma brincadeira, falei: “daqui a pouco chegarei aí com a polícia e você será algemada juntamente com o responsável pela orientação.” Do outro lado da linha escuto: “Uh!” E antes que ela pudesse expressar mais claramente o seu medo eu caio na gargalhada. Ela então sorri – meio aliviada – e na maior naturalidade marca a consulta para o dia seguinte.

O tratamento médico que recebo dos colegas é de carinho para com o seu decano. Marcar uma consulta médica por um plano de saúde é uma aventura. E os nossos irmãos do SUS? Lá não vou, pois não tenho mais tempo de vida para esperar por uma consulta para, talvez, após a Copa de 2014. Se para marcar uma simples consulta médica é matar um leão, adeus ao humanitarismo!

Gabriel Novis Neves
18/02/2019


* Publicado simultaneamente no http://www.bar-do-bugre.blogspot.com/

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